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José Maria
Hoje tive notícias do José. Soube que perguntou por mim e pediu que agradecessem a acolhida, o carinho e a atenção que mudaram a sua vida.

Conheci José numa tarde de setembro. Era feriado numa cidade do Rio de Janeiro. O povo tinha todo partido para um evento em São Paulo e eu estava sozinha com minha estagiária, trabalhando num livro que um dia estará aqui. Só nós duas nos encontrávamos no trabalho.

Esqueci de dizer que sou Assistente Social e Professora e trabalho numa clínica de ajuda a pessoas que lutam para sobreviver aos amargos da vida.

Quando a campainha tocou seguimos para atender. Era ele, o José Maria. Alto, penso que 1,83 cm, bermuda preta, uma camiseta bem simples, touca na cabeça e havaianas nos pés. Disse, de imediato, que precisava ajuda. Segurava um papel em sua mão.

Falei que não havia ninguém a não ser eu e a estagiária e que não atuávamos no serviço ambulatorial.

Ele me olhou em desespero.  Desabei! Vi sua dor, seu sofrimento e o convidei pra entrar e o encaminhei para a poltrona da sala de entrada. Martina, minha estagiária sentou na poltrona adjacente e eu ao lado do José.

Nem bem se acomodou começou a falar. Contou que tinha problemas com drogas ilícitas. Fazia 30 anos que as usava. Por causa da droga já tinha perdido a esposa. Tinha uma filhinha e não queria perdê-la também.

José me contou a sua história por duas longas horas. Eu o ouvia, olhando nos olhos e praticamente calada. Quando ele respirava eu fazia uma pergunta. Relatou da infância, havia perdido o pai muito cedo e a mãe casara de novo. O padrasto o maltratava diariamente, batia, brigava.

Na adolescência se revoltou e iniciou o uso da cannabis. Dali pra cocaína foi um pulo. Como era bem de vida, tinha dinheiro para comprar.

Ao final pediu socorro. Seu olhar acusava a dor cortante.

Conversamos sobre todas as possibilidades. Me contou que gostaria de se acolher numa clínica de ajuda as arcados da vida como ele.

Adicionei o número de seu celular. Disse que enviaria um contato de ajuda. Ele se demorava para ir. Se sentia seguro ali. Queria ficar mais um pouco. No entanto lhe disse que eu ao lar queria retornar.

José foi embora e cumpri minha promessa. Naquela noite, enviei uma mensagem desejando forças na luta e um contato pra que ele acessasse um serviço de atendimento enquanto não conseguisse o acolhimento. Na pressa em escrever cortei o dedo na telinha de proteção que havia quebrado uns dias antes. A ficou por dias na pele frágil e alva.

No dia seguinte - um sábado - recebi surpresa uma mensagem com um vídeo e uma música. Agradeci gentilmente e desejei firmeza no propósito de mudar sua vida. Ainda no sábado à noite me enviou mais uma música. Novamente agradeci e falei que apostava na sua decisão de ir em frente com as mudanças em sua vida.

No domingo de manhã acordei com um vídeo de uma garotinha miúda, linda bailarina dançando balé. Era a filha do José. Respondi dizendo que era uma linda menina e que era uma razão bem forte para ele continuar em seu desejo de mudar.

Na segunda, as 8 horas no trabalho, mostrei os vídeos para minha estagiária. Me disse que ele se sentiu acolhido e criou um laço comigo. Logo em seguida, vieram me chamar. Era José que tinha vindo para comigo falar.

Dessa vez estava sem touca, bem vestido e parecia que eu via um brilho em seu olhar. Falamos por uma hora. A estagiária, quieta apenas escutando. José relatou mais um pouco de sua triste história. Eu o ouvia atentamente, com muito respeito e atenção.

Falamos sobre processo de acolhimento e depois fomos atrás de atendimento psicológico até que esse momento chegasse. Conseguimos marcar uma hora para o dia seguinte.

José chegou atrasado ao serviço. Não pode ser atendido e pediu novamente para comigo falar. Fui à porta, saí lá fora  e ouvi suas desculpas. Pedi que se mantivesse firme na sua promessa de uma nova vida. Falou que que desde a sexta-feira não tinha usado  a droga.

Quando ele foi embora conversei com a estagiária. Ela me disse que achava que ele criou um vínculo comigo e que iria para o acolhimento só para não me decepcionar. Ela tinha dúvidas se ele queria, de fato, parar.

Nos dias seguintes enviei diariamente uma mensagem de motivação. Ele agradecia e respondia com o relato do seu dia.

Um dia, José parou de comigo falar. Enviei uma mensagem que até hoje não teve visualização. Me espantei.  Conversando com a estagiária ela me disse que talvez ele havia voltado a droga a usar. Que eu era só bondade e acreditava demais no que os outros me falavam.

Expliquei que acreditava na humanidade, que sabia que era possível mudar o que a gente quisesse.

Os dias foram passando e nada do José a mensagem olhar. Minha estagiária me disse que, possivelmente, José já havia vendido o celular ou trocado por droga. Eu não queria acreditar.

Pensei em José todos os dias. Fiz preces por sua vida. Foram dias e dias sem notícias me dar.

Um dia, a pouco tempo atrás, lembrei de uma clínica. Enviei uma mensagem para a coordenação perguntando se José estava lá. Me responderam que sim e que estava bem. Perguntei por que não respondia minhas mensagens. Disseram que  na clínica não podia ficar com o celular. José nunca leu minhas mensagens porque não podia, não porque não quisesse ou estivesse drogas a usar.

Correndo liguei para minha estagiária e contei. Ela me disse:

- Só tu Maria, só tu! Eu nunca que ia procurar numa clínica. Iria nos lugares onde vendem droga na cidade, na delegacia, presídio e até na área de saúde mental de um hospital. Você é a única pessoa que ao invés de procurar nos "mocós" e "boca de fumo", vai numa clínica perguntar. Acredita demais no homem.

Dias atrás um moço veio comigo falar. Me disse que José havia perguntado por mim e dito que foi a forma como o acolhi e escutei a história de sua vida  e depois, todos os dias o motivei que o empurraram pra frente para o acolhimento buscar.

José vai ficar quase um ano naquele lugar. Aposto na sua vida. Sei que, se quiser, vai a liberdade conquistar.

Era o que eu acreditava, mas ontem um guerreiro veio me contar que José abandonou tratamento e vaga nas ruas, bocas de fumo e mocós da cidade. Vaga só, na mão o pó da morte, que cheira pensando que vai a dor de sua alma arrancar...
Maria
Enviado por Maria em 15/09/2022
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